Orientações divinas sobre uso de bebidas fermentadas na liturgia e na vida dos judeus
Talvez a primeira orientação que encontramos na Bíblia sobre o uso de bebidas fermentadas seja no livro de Números, onde lemos: “O Senhor disse a Moisés: Dirás aos israelitas o seguinte: quando um homem ou uma mulher fizer o voto de nazireu [nazareno], separando-se para se consagrar ao Senhor, abster-se-á de vinho e de bebida inebriante: não beberá vinagre de vinho, nem vinagre de uma outra bebida inebriante; não beberá suco de uva, não comerá nem uvas frescas, nem uvas secas” (grifos meus) (Num 6,1-3). Aqui está claro que o vinho que o narizeu deverá se abster é o vinho fermentado ou “outra bebida inebriante”.
Aqui Deus ordena que aqueles que fizerem votos de narizeu deverão se abster de vinho ou de qualquer “outra bebida inebriante”. Entretanto, em determinada situação, o consumo de “bebida inebriante” é permitida a estas pessoas, conforme lemos: “O sacerdote os agitará diante do Senhor: é uma coisa santa que pertence ao sacerdote, como também o peito agitado e a coxa oferecida. Somente depois disso o nazireu poderá beber vinho” (Num 6,20).
Ora se o consumo de vinho fermentado ou “outra bebida inebriante” fosse proibida por Deus, Ele não daria uma ordem a Moisés permitindo este consumo ao narizeu já consagrado.
No livro do Profeta Ezequiel há uma outra restrição do Senhor quanto a vinho: “Nenhum sacerdote beberá vinho quando tiver de penetrar no átrio interior” (Ez 44,21; ver também Lv 10,9 e Deut 29,6). Esta proibição é da mesma natureza da que encontramos em Num 6,1-3. Há momento em que aqueles que foram consagrados ou trabalham no serviço ao Senhor, devem se abster dos prazeres da vida, para que melhor prepararem seu espírito para Deus. Entretanto, esta restrição é momentânea, ocasional e não eterna. Da mesma forma que o Senhor manda os sacerdotes se absterem de vinho para penetrar no átrio interior (lugar conhecido como Santo dos Santos, onde Deus estava presente). Quando Deus proíbe o consumo de vinho e ou o permite, estabelece sempre uma relação com as coisas boas da vida, as quais o usufruto deve estar orientado para a Sua Glória.
Esta divina relação é demonstrada também de outra forma, por exemplo, quando o usufruto das coisas materiais nos é concedido como recompensa do nosso trabalho. Vejamos: “Comprarás ali com esse dinheiro tudo o que te aprouver, bois, ovelhas, vinho, bebidas fermentadas, tudo o que desejares, e comerás tudo isso em presença do Senhor, teu Deus, alegrando-te com tua família” (grifos meus) (Deut 14,26). Ver também Salmo 103,14-15; Is 62,9.
A dignidade do vinho fermentado sempre foi algo tão evidente, que seu uso foi autorizado pelo próprio Deus no trabalho dos sacerdotes no templo, na execução dos sacrifícios, vejamos: “A libação será de um quarto de hin para cada cordeiro; é no santuário que farás ao Senhor a libação [sacrifício] de vinho fermentado” (grifos meus) (Num 28,7).
Em Daniel 5, o Rei Baltazar manda pegar o vinho que está no templo para uma festa. A Sagrada Escritura testemunha que todos já estavam bêbados quando o Rei dá esta ordem. É claro que o objetivo era continuar a farra; e o pedido do Rei não faria sentido se o vinho que estivesse sendo usado no templo não fosse fermentado. E como já vimos em Num 28,7, por uma ordenança divina, o vinho era mesmo fermentado.
A questão da Embriaguez
A embriaguez é uma alteração do estado de consciência devido a um aumento do volume de álcool no sangue, remetendo a um aumento do volume de álcool no cérebro (causa da embriaguez).
A primeira referência que encontramos na Bíblia sobre a embriaguez está em Gn 9,21 onde lemos: “[Noé] Tendo bebido vinho, embriagou-se, e apareceu nu no meio de sua tenda”. Nota-se aqui que o vinho que Noé bebeu era vinho fermentado, caso contrário não teria se embriagado.
Interessante notar que a embriaguez de Noé não é condenada na Sagrada Escritura, ao contrário da atitude de seu filho Cam que é amaldiçoado por expor a nudez de seu pai aos seus irmãos (cf. Gn 9,22-26).
A embriaguez de Ló também não é reprovada, embora tenha sido planejada por suas filhas para que pudessem manter relações sexuais com seu pai (cf. Gn 19,33-34). Nem mesmo a atitude delas é reprovada, já que suas intenções não eram praticar pederastia com o pai, mas unicamente garantir-lhes uma posteridade; já tendo em vista a destruição da cidade onde moravam (cf. Gn 19,29), se estabeleceram em Segor (cf. Gn 19,30). Ló já era velho e na região não havia varões que pudessem coabitar com as moças (cf. Gn 19,31).
Esta alteração da consciência (embriaguez) causada por “bebida inebriante” ou fermentada, é mencionada na Sagrada Escritura como uma “alegria”. Vejamos alguns exemplos:
“No sétimo dia, o rei cujo coração estava alegre pelo vinho, ordenou a Mauman, Bazata, Harbona, Bagata, Abgata, Zetar e Carcar – os sete eunucos a serviço, junto de Assuero” (grifos meus) (Ester 1,10).
“Fazeis brotar a relva para o gado, e plantas úteis ao homem, para que da terra possa extrair o pão e o vinho que alegra o coração do homem, o óleo que lhe faz brilhar o rosto e o pão que lhe sustenta as forças” (grifos meus) (Salmo 103,14-15).
“Faz-se festa para se divertir; o vinho alegra a vida, e o dinheiro serve para tudo” (Ecl 10,19).
“Ora, Absalão dera aos seus criados a ordem seguinte: Ouvi! Quando Amnon tiver o coração alegre por causa do vinho, e eu vos disser: Feri Amnon!, então vós o matareis; não tenhais medo, porque sou eu quem vo-lo ordena. Coragem, e sede homens fortes!” (grifos meus) (2 Sam 13,28).
“Arrasta-me após ti; corramos! O rei introduziu-me nos seus aposentos. Exultaremos de alegria e de júbilo em ti. Tuas carícias nos inebriarão mais que o vinho. Quanta razão há de te amar!” (grifos meus) (Ct 1,4).
Se que alguém está pensando que a Sagrada Escritura incentiva a embriaguez, devo dizer que está redondamente enganado. A embriaguez que “alegra” o coração (no dizer das Sagradas Letras) não deve ser confundida com àquela que fomenta a desgraça. A primeira é resultado de um consumo ordenado e moderado, enquanto a segunda é resultado do excesso da liberdade que Deus nos concedeu. A primeira não é pecado, enquanto a segunda sim. Vejamos:
“Não é um pouco de vinho suficiente para um homem bem-educado? Assim não terás sono pesado, e não sentirás dor” (Eclo 31,22).
“O vinho bebido sobriamente é como uma vida para os homens. Se o beberes moderadamente, serás sóbrio” (Eclo 31,32).
“O vinho, bebido moderadamente, é a alegria da alma e do coração” (Eclo 31,36).
O consumo de bebida fermentada, que não seja para a “alegria” do coração, é fortemente condenada na Sagrada Escritura, vejamos:
“Mas também estes titubeiam sob o efeito do vinho, alucinados pela bebida; sacerdotes e profetas cambaleiam na bebedeira. Estão afogados no vinho, desnorteados pela bebida, perturbados em sua visão, vacilando em seus juízos” (Is 28,7).
Interessante passagem do Profeta Isaías. Se o consumo de vinho fermentado fosse proibido por Deus (e já vimos que não é o caso), jamais os “sacerdotes e profetas” cambaleariam “na bebedeira”, pois nem sequer o experimentariam. No entanto, o abuso da liberdade que Deus nos concede é o berço de grandes males (cf. Is 5,12; Is 5,22; Eclo 19,2; Eclo 31,30; Prov 31).
“Pasmai-vos e maravilhai-vos, obstinai-vos, feridos de cegueira, embriagai-vos, mas não de vinho, cambaleai, mas não por causa da bebida” (Is 29,9).
“Ai daqueles que desde a manhã procuram a bebida, e que se retardam à noite nas excitações do vinho!” (Is 5,11).
“O operário dado ao vinho não se enriquecerá, e aquele que se descuida das pequenas coisas, cairá pouco a pouco” (Eclo 19,1).
“Zombeteiro é o vinho e amotinadora a cerveja: quem quer que se apegue a isto não será sábio” (Prov 20,1).
“O que ama os banquetes será um homem indigente; o que ama o vinho e o óleo não se enriquecerá” (Prov 21,17).
Que tipo de vinho foi usado por Jesus e os Apóstolos?
Na Sagrada Escritura várias palavras são utilizadas para fazer referência ao vinho, cada uma refere-se a um tipo de vinho diferente (seja no grego ou no hebraico).
A primeira classe de vinho refere-se um vinho mais forte. As palavras “sikera” (grego, cf. Lc 1,15) e “shêkar” (hebraico, cf. Prov 20,1; Is 5,1) referem-se a isto, e normalmente são traduzidas por “sidra” ou “bebida forte”, devido ao elevado teor alcoólico que este tipo de vinho possuía.
A segunda classe refere-se a um vinho novo mais adocicado. Palavras como “gleukos” (grego) e “tirôsh” (hebraico, cf. Prov 3,10; Os 9,2; Jl 1,10), aludem a este tipo de vinho. Em At 2,13 os Apóstolos foram acusados de estarem embriagados dele, por causa da ação do Espírito Santo sobre eles.
A terceira classe é mencionada com maior freqüência tanto no AT quanto no NT. A palavra hebraica para este vinho é “yayin”, que tem em sua raiz o significado de borbulhar, espumar ou ferver. A palavra referente no grego é “oinos”, que em seu sentido mais geral refere-se simplesmente ao suco de uva.
Normalmente a literatura judaica indica que o “yayin” é um vinho misturado. Normalmente é referenciado como um xarope grosso (produzido através do suco de uva fervido) misturado com água (cf. Sl 75,8; Prov 23,30), de baixo teor alcoólico. Embora em menor freqüência, pode também corresponder a um licor obtido pela fermentação.
A Mishná Judaica que é a antiga coleção escrita de interpretações orais da lei mosaica e antecederam o Talmud, declara que os judeus utilizavam com certa regularidade o vinho fervido, ou seja, o suco de uva reduzido a uma consistência grossa mediante a ação do calor. Esta descrição corresponde à terceira classe de vinho.
A palavra grega “oinos” portanto pode fazer referência tanto ao suco de uva, quanto ao vinho de baixo teor alcoólico.
Algumas pessoas afirmam que o vinho resultado do milagre de Jesus nas bodas de Cana da Galiléia não era alcoólico (“oinos” como suco de uva). Este tipo de afirmação fundamenta-se na doutrina humana de que Deus proíbe o consumo de bebidas alcoólicas. De qualquer forma o milagre da transformação da água em vinho merece uma análise mais profunda.
Conforme vimos, o vinho fermentado era usado no templo para o oferecimento do sacrifício a Deus (cf. Num 28,7), seu consumo era tido como um prêmio resultado do trabalho (cf. Deut 14,26). Por esta razão, era tido em alta estima entre o povo Judeu, onde seu uso foi estendido às celebrações festivas, sejam religiosas ou não (cf. v. Unger’s Bible Dictionary, verbete “Lord’s Supper”).
Jesus e Sua Santa Mãe estavam em uma festa de casamento onde tradicionalmente o vinho servido aos convidados era alcoólico. Isso pode ser atestado pela declaração do mestre de cerimônia quando provou o vinho que Jesus fez: “É costume servir primeiro o vinho bom e, depois, quando os convidados já estão quase embriagados, servir o menos bom” (grifos meus) (cf. Jo 2,10). Ora, ele fala mais que claramente que “é costume servir primeiro o vinho bom”; vinho este que se não fosse fermentado não deixaria os convidados “quase embriagados”.
Se o vinho que foi servido primeiramente aos convidados não fosse alcoólico, por que o mestre de cerimônia faria tal declaração? Ele se espanta exatamente porque o vinho melhor (o vinho resultado do milagre de Cristo), foi servido quando todos já estavam “quase embriagados”, quando o costume era exatamente o contrário. Por isso ele depois de provar o vinho milagroso, se dirige a Jesus dizendo: “É costume servir primeiro o vinho bom e, depois, quando os convidados já estão quase embriagados, servir o menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora” (Jo 2:10).
Isto nos remete a confirmar que o vinho que Cristo fez também era alcoólico, pois não faria nenhum sentido Ele utilizar um tipo de vinho diferente do que era comumente usado. Não só isso, mas com toda certeza, Cristo desejou o melhor para aquele casal, cujas bodas estavam sendo realizadas. E assim providenciou um vinho excelente, um vinho conforme àquele que era usado no templo em honra Dele, um vinho com álcool (cf. Num 28,7).
A primeira carta de São Paulo a Timóteo dá testemunho que o “oinos” usado entre os Judeus era alcoólico. A expressão “dado ao vinho” em 1 Tm 3,3 é a tradução da palavra grega “paroinos” cujo significado literal é “colocar-se ao lado do vinho”, aludindo a prática de ficar bebendo o dia inteiro. São Paulo recomenda que quem for escolhido para tomar lugar no Ministério de Deus, não seja um beberrão, fazendo assim um uso não permitido do vinho. A passagem só faz sentido se o vinho for alcoólico. Ver também Tt 1,7.
Não só o presbítero deve consumir o vinho com sabedoria, mas também o leigo. Por isto o Apóstolo Paulo ensina aos Efésios: “Não sejais imprudentes, mas procurai compreender qual seja a vontade de Deus. Não vos embriagueis com vinho, que é uma fonte de devassidão, mas enchei-vos do Espírito” (Ef 5,17-18).
Na Carta aos Efésios, São Paulo pede que as pessoas não se embriaguem (cf. Ef. 5,18). Provavelmente ele estava ser referindo à celebração da “Ceia do Senhor”, devido às recomendações que são dadas exatamente no versículo seguinte: “Recitai entre vós salmos, hinos e cânticos espirituais. Cantai e celebrai de todo o coração os louvores do Senhor” (cf. Ef. 5,19). Tal exortação não faria o menor sentido se o vinho usado nas celebrações cristãs não fosse alcoólico.
Os Cristãos até os tempos do Protestantismo histórico sempre celebraram a “Ceia do Senhor” com vinho alcoólico, costume herdado da era apostólica. Luteranos, Presbiterianos e Anglicanos até hoje utilizam vinho fermentado em suas celebrações.
Conclusão
Jesus condenou com veemência a prática de se anular a doutrina de Deus pela doutrina dos homens (cf. Mc 7,5-8).
Esta prática é conhecida como “cerca em torno da lei”, isto é, substitui-se um ensinamento divino por um humano mais severo, que tem com objetivo evitar que as pessoas pequem. Um exemplo da instituição do homem em detrimento de uma divina, por parte dos Fariseus, é denunciada por Jesus em Mc 7,9-13.
Aqueles que adoram citar Mc 7,5-8 contra a Igreja Católica, além de não discernirem a diferença entre as Tradições que vem de Deus (com “T” maiúsculo, cuja observação é recomendada pelo Apóstolo Paulo em 2 Tes 2,15) e as tradições que vem dos homens (com “t” minúsculo), acabam tornando-se piores que os Fariseus, pelo fato de que estes nem sequer ousaram proibir o consumo de álcool ao povo.
A doutrina da proibição de consumo de bebidas alcoólicas não é divina, mas humana. São Paulo nos ensinou: “Estai de sobreaviso, para que ninguém vos engane com filosofias e vãos sofismas baseados nas tradições humanas, nos rudimentos do mundo, em vez de se apoiar em Cristo” (Col 2,8). Ainda sobre a pena de São Paulo aprendemos que “Para os puros todas as coisas são puras. Para os corruptos e descrentes nada é puro: até a sua mente e consciência são corrompidas” (Tito 1,15).
O consumo de bebidas alcoólicas não é proibido ao cristão, entretanto este deve sempre ter em mente estas duas regras: “No princípio o vinho foi criado para a alegria não para a embriaguez” (Eclo 31,35) e “O vinho, bebido em demasia, é a aflição da alma” (Eclo 31,39).
Fonte: Veritatis Splendor
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