Cristina Scuccia: todo o mundo em um palco eletrônico

Por: Rafael Vieira

Irmã Cristina - The Voice Italia

Uma tese de mestrado em Comunicação defendida em 2008, na Universidade de Brasília, por Ana Carolina Kalume Maranhão, apresenta análise da obra do filosofo e jornalista Régis Debray sobre Mídia e Religião. Naquele trabalho, a autora reconhece que a intenção do autor francês em seu livro “Les communions humaines. Pour en finir avec la religion”, de 2005, sem tradução para o português, era de afirmar que o sagrado é uma via de acesso ao profano e o imaginário, uma porta de entrada para o real. Deixando de lado o rigor acadêmico e sem compromisso com a inteira reflexão daquela tese, apenas tomando seu pressuposto emprestado, proponho que a final do reality show italiano que levou uma freira ursulina a se tornar “a voz” se explica nesses dois princípios. Uma moça de 25 anos que usa um hábito religioso preto e chegou a atrair 75 milhões de usuários da internet para visualizar seus vídeos escancara a força do sagrado como entrada para o mundo da música e do espetáculo que parecia ser habitado apenas por demônios atraentes. E a ideia de que ela tem uma mensagem diferente embolou as contas de um rapper comovido, de uma confusa senhorita do blues, de uma pasma septuagenária dos espetáculos, de um atônito rock star e de um público fiel que lhe deu mais de 60% dos votos contabilizados. Só havia contra ela os concorrentes que pareciam gritar que não teriam chances diante daquele fenômeno. A favor dela estava também, claro, a indústria cultural que produz esses programas de TV e fatura horrores em publicidade por causa da audiência de gente que brinca de ser Deus quando, numa competição quase banal, define pela força de mensagens pagas, por telefone, quem vive e quem morre numa história.

Irmã Cristina Scuccia fez estrada nas redes sociais e o seu nome chegou a debates de vários jornais importantes do mundo. Ela dividiu opiniões. O sagrado no profano? Uma freira que se joga num desses sucessos musicais televisivos mundiais chamados de “talent”? O formato do tal “The Voice” não traz espaço para reflexões sérias e a freira parece tímida. Quem acompanhou todos os episódios ouviu muito pouco do que ela tem a dizer. A edição de sua blind audition valorizou declarações nas quais ela afirma ter um dom e que oferece esse dom a todos e que o Papa Francisco pediu para que a Igreja saísse para o mundo. Fora disso, só apareceram especulações. Na entrevista coletiva dos quatro finalistas concedida antes do espetáculo ao vivo na noite da quinta-feira, 5 de maio, alguém disse que muita gente achava que se ela não fosse freira, não faria parte daquele quarteto. Ela desconversou e disse alguma coisa positiva. E não houve nada diferente disso em todas essas semanas de expectativa: fofocas e defesas aguerridas por parte de grupos católicos que encheram o Facebook de mensagens afirmando que ela estava cumprindo um belo papel. Quase ninguém tratou de voz, de entonação, de música, o que, afinal, poderiam ser assuntos que a competição se propõe a aprofundar. A irmã ganhou e o prêmio é um contrato com uma gravadora internacional. Agora, na verdade, é que começa a história da sua voz.

A noite da conclusão do itinerário percorrido até a vitória foi particularmente interessante por ter levado ao palco a jovem Giorgia Pino, uma cantora extraordinária que com uma voz rouca encantou mais com uma música inédita do que interpretando sucessos. Ela deu um presente a audiência com uma canção envolvente que tem o título “se davvero vuoi”. Todas as participações do candidato treinado por Raffaella Carrà também foram intrigantes. E a presença de um roqueiro cabeludo que seguiu até o ultimo minuto com a religiosa no palco disputando o título do programa chegou a confundir quem acompanhava com atenção pois se trata de uma grande voz e seu nome não poderá ser esquecido: Giacomo Voli. O modo como interpretou canções de rock pesado do Led Zeppelin fez arrepiar até quem não tem intimidade com o gênero. Sem dizer, que sua participação foi, indiscutivelmente, simpática. A reapresentação da freira interpretando a trilha sonora de “Flashdance.. What a feeling” também trazia lições de superação, de sonho e de honestidade artística. Quem não se lembra de Jennifer Beals em sua bicicleta trabalhando pesado e treinando para dançar num espetáculo famoso e que se sente destruída depois de desconfiar que poderia ter passado no teste apenas por causa do namorado influente? Irmã Cristina chegou a acompanhar os bailarinos no ritmo que fez tanto sucesso com Irene Cara.

No palco, depois da entrega do prêmio, Irmã Cristina surpreendeu ao convidar todos para recitar o “Pai Nosso”, dizendo ser o seu “sonho”. Artistas visivelmente constrangidos se enroscaram uns nos outros. A direção de TV teve a delicadeza de fechar o plano no rosto da irmã enquanto ela rezava e de não mostrar o desconserto que a circundava nem os possíveis adeptos do seu pedido inaudito. O imaginário abria as portas para o real. Aquele gesto mostrou a cara de quem estava sobre aquele palco eletrônico: ateus, crentes, uma freira e o mundo. No fundo, todos imaginando sair da situação de generalizada desesperança com as sociedades, as economias, as políticas e até mesmo os esportes para encontrar um mundo novo. Entre a fé professada pela freira e as armadilhas perversas da indústria do show business passeou o sonho da oração de Jesus: fraternidade, transcendência, perdão e o desejo de viver livre do mal.

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